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Enciclopédia dos migrantes

Ángel Belzunegui

Sociólogo, Social & Business Research Lab (SBRlab), Universitat Rovira i Virgili, Tarragona

O projeto da Enciclopédia dos migrantes coloca interrogações interessantes a esclarecer, a nível conceptual e de significado. O saber legitimado permaneceu sempre em constante dialética com outros géneros de saberes, especialmente se estes eram provenientes daquilo a que se veio a chamar saberes populares. O processo de legitimação do saber fez e faz parte da posição hegemónica de determinados grupos sociais em litígio. Nesta dialética histórica dos “outros saberes” costuma abrir-se caminho através da tradição oral, longe das academias onde predominam racionalismos e normativismos num só sentido.

Face à imposição de um saber oficializado que produz conhecimentos “naturalizados”, técnicos e pretensamente asséticos, a Enciclopédia dos migrantes apresenta conteúdos elaborados pelas próprias pessoas migrantes convertidas em protagonistas do saber, de um tipo de saber que permaneceu (e ainda permanece) oculto e não valorizado. Os testemunhos das pessoas refletem as suas condições materiais e sentimentais de vida, condições essas que são interpretadas pelos mesmos atores e que surgem como novas fontes de conhecimento. A história social colocou em destaque a importância do conhecimento da vida quotidiana. A partir de uma abordagem etnometodológica, destacamos também a importância de conhecer a interpretação que os próprios atores fazem da sua vida quotidiana. Os testemunhos enviados a alguém em forma de carta resumem pontualmente uma parte do dia-a-dia das pessoas que os relatam, onde expressam as suas perceções, anseios, visões e significados das suas experiências migratórias.

A Enciclopédia não é um projeto para “falar dos migrantes” mas sim um projeto no qual os “migrantes falam”. Este é um ponto de partida e por sua vez também um importante ponto de chegada sobre que existiu um consenso generalizado entre os participantes do projeto, desde a Comissão Organizadora até aos próprios participantes que dão os seus testemunhos.

Nunca até agora se tinham juntado tantas vozes de migrantes numa só coletânea. As cartas são testemunhos significantes e que têm significado. Os registos da Enciclopédia são fundamentais, tanto a nível formal como de conteúdo. As pessoas e os seus textos não são objeto de estudo no sentido clássico do termo, mas são os sujeitos de base da Enciclopédia e que está à disposição do público, material que faz parte de outro género de conhecimento e de saber. Face a um género de investigação que petrifica o que observa, que converte o dinâmico em estático, o ativo em passivo e o agente em paciente, a Enciclopédia contém testemunhos não codificados e vivos, proporcionados diretamente pelos seus protagonistas, sem passarem pela peneira de um posto de vista alheio.

A Enciclopédia contém também o momento de encontro entre vários atores: a confiança, a compreensão e a empatia que fazem parte desta coletânea, se bem que não sejam manifestamente explícitas. A criação deste saber, de baixo para cima, fundamentou-se nos contactos, na explicação da relevância de cada uma das histórias e na importância de construir um compêndio de diferentes significados mas, ao mesmo tempo, comuns. É tanta a pressão exercida sobre a validade e sobre a utilidade do saber, que até chegámos a pensar que o nosso saber é irrelevante.

As dinâmicas de colaboração entre os agentes que participaram na Enciclopédia giraram à volta da ideia de proximidade entre o pessoal de contacto e os migrantes. O conhecimento prévio, o trabalho na comunidade, a empatia pessoal face ao fenómeno da imigração, inclusivamente a militância pelos direitos das pessoas deslocadas, geraram cumplicidade em situações de colaboração.

Os migrantes que escreveram as cartas falam-nos das suas perceções e partilham os seus testemunhos e a sua imagem. A elaboração dos conteúdos da Enciclopédia partiu de desenvolveu-se com uma abordagem naquilo que poderíamos chamar de “etno(foto)grafia”. Neste caso, a realidade social não pode ser apreendida como se tratasse de uma coisa. Não é esta a melhor opção metodológica para um género de projeto como o da Enciclopédia. A Enciclopédia baseou-se em algo semelhante à ação-interação.

A ação-interação concretiza-se: a) uma aposta aberta na recolha de informação, b) baseada na criação de dispositivos coletivos e/ou individuais construídos entre os agentes que participam na troca de informação; c) a utilização de ferramentas técnicas não invasivas, isto é, instrumentos e técnicas que o indivíduo pode adotar e adaptar a si e ao seu discurso; d) não se persegue uma informação uniformizada nem tipificada mas antes uma informação que expresse o significado que as pessoas dão aos seus atos e experiências.

A participação das pessoas na Enciclopédia foi levada a cabo através de uma perspetiva aberta, democrática e autónoma. Por isso, a produção em forma de carta foi também aberta, tanto no processo como no resultado. As contribuições pessoais foram autênticas, sentidas e com significado para a pessoa que as quis partilhar. São um reflexo de como as pessoas imaginam e se dão conta das suas experiências vitais como migrantes. A Enciclopédia fala muitas línguas. Recolheu as expressões das pessoas, os seus códigos linguísticos e os seus significados.

Revel (2011:3) considera que a linguagem coloquial atribui ao comum o valor da banalidade, o que nunca é conhecido como objeto de desejo, o que é assumido. O comum não merece nenhum reconhecimento, salvo o de uma existência demasiado abundante, demasiado presente para que nos fixemos nela, demasiado visível para que a investiguemos”.

A Enciclopédia pressupôs uma aprendizagem em comum para pessoas que vinham experimentando e expressando conceções sobre a realidade, a partir de vários ângulos. Investigadores sociais, artistas, pessoas ligadas à administração, ativistas, vizinhos…colaboraram para conceber algo novo e coproduzido.

É por isto que a Enciclopédia nunca foi um projeto para ser utilizado em investigação, o que poderia ter condicionado a redação da carta ou da fotografia. Nunca se privilegiou a análise, isto é, um plano de análise pré-concebido, para evitar que tudo se ajustasse a esse plano sem ter em conta as especificidades das pessoas, das relações e dos processos. Nas metodologias tradicionais, em que os dados nos permitem levar a cabo o plano de investigação pré-concebido, estes dados são rejeitados sob a suspeita de que não são fiáveis. Este facto repete-se frequentemente sem ter em conta que, em muitos casos, os dados contraditórios são-no precisamente como consequência da tensão entre o indivíduo convertido em objeto de estudo e o investigador (ou o projeto em si mesmo). É uma espécie de rejeição inconsciente de uma mecânica que transforma os atores em meras engrenagens de um mecanismo que, forçosamente, tem de funcionar. Daí que a investigação clássica evite a improvisação, como se esta não fizesse parte da própria curiosidade como fonte de conhecimento e entendimento da realidade social.

No entanto, na prática, confrontamo-nos, com frequência, com realidades sociais profundamente dinâmicas, o que equivale a pensar nelas como elementos mutáveis das criações humanas, mais do que como sistemas fechados que poderiam ser investigados com câmaras fixas e escuras. Conceber a realidade social como algo dado e extrínseco ao indivíduo projeta imagens externas planas, tal como uma câmara escura, sem lente. Para ultrapassar esta forma de (re)produzir a realidade, a Enciclopédia propôs-se sobrepor olhares que permitiram captar a dimensão multiforme da migração, com o objectivo de abranger um maior grau de complexidade e resolver o problema da caraterização

O protocolo de investigação da Enciclopédia dos migrantes baseou-se naquilo que denominamos sequências de cooperação para a conceção de dispositivos que foram criados a partir da experiencia de todos os participantes no processo, com o menor posicionamento hierárquico, já que se tratava de criar dispositivos abertos nos quais o acaso, que aparece no próprio processo, tem um papel importante na criação de informação. No entanto, nestas sequências, foi importante definir os papéis das pessoas que participaram para salvaguardar um princípio básico do dispositivo que não é outro senão a valorização de todas as participações dos atores que contribuíram com os seus testemunhos, assim como as participações das pessoas que conceberam inicialmente o dispositivo na associação L’âge de la tortue, o qual foi posteriormente debatido e validado por um grupo de reflexão de cidadãos, originando assim uma nova metodologia.

A experiencia migratória converteu-se numa atividade tipificada, influenciando decisivamente a redefinição das fronteiras geográficas, culturais e sociais, assim como a noção de lugar e de sentimento de pertença, num contexto específico. Efetivamente, a migração irrompeu nos espaços tradicionalmente homogéneos e reconfigurou os locais e as relações originadas nestes espaços. Neste sentido, a Enciclopédia é uma cartografia de sentimentos.

Esta cartografia de experiências e de sentimentos faz parte de uma compilação ordenada com a lógica do acaso do alfabeto latino. Não quisemos dotar a Enciclopédia de uma ordem determinada, baseada na nacionalidade dos testemunhos, na idade ou no país de residência. Considerámos que, para este projeto, a ordem mais lógica era não haver ordem nenhuma. Sem categorias prévias, a única solução viável foi o alfabeto, não como uma forma de classificar mas sim como uma forma descobrir. As vozes que a obra contém resultam das suas expressões e experiências pessoais e são estas vozes que regulam os domínios sobre os quais os manifestantes se querem manifestar.

E com esta ideia chegamos à questão de saber como será a vida da Enciclopédia depois da Enciclopédia. O que será dela? E concluímos que a sua longa vida depende da capacidade que ela mesma encerra de ser lida, observada, escrutinada…por pessoas diferentes em situações diferentes. Continuando com a ideia de abrir o saber ao conhecimento geral, a Enciclopédia poderá servir para descobrir experiências que, de outro modo, passariam despercebidas, esquecidas.

Esperamos que este trabalho hercúleo, esta Enciclopédia dos migrantes, possa contribuir para que todos tomemos consciência da complexidade da migração como fenómeno intrinsecamente humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS