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Enciclopédia dos migrantes

Jennifer Ballantine Perera

Historiadora, Gibraltar Garrison Library, Institute for Gibraltar and Mediterranean Studies, University of Gibraltar

« A real dificuldade não consiste em decidir quem se deve aceitar, mas sim quem se deve excluir » Frederick Solly Flood, 1866

Como Território Britânico Além-Mar na ponta da Península Ibérica, e como trampolim intercontinental natural, Gibraltar tornou-se um lar para os migrantes em busca de oportunidades comerciais, principalmente após 1713, quando Gibraltar fora legalmente transferido para a Grã-Bretanha consoante os termos do Tratado de Utrecht. Encorajados pela procura por mão-de-obra qualificada de comerciantes para prover a guarnição militar, esses migrantes empreendedores da África do Norte e da Europa contribuíram para a transformação de Gibraltar numa verdadeira colónia comercial vibrante. A hibridez e o multiculturalismo integraram desde então a comunidade de gibraltinos que evoluiu de tais migrações ao Rochedo.

Ainda assim, como promontório de apenas cerca de três milhas quadradas, cujo espaço físico é demasiado limitado para albergar todos os recém-chegados, as migrações contínuas sempre foram alvo de sérias preocupações. No século XIX, por exemplo, a superpopulação devida à falta de espaço para moradias foi isolada como agente primário responsável pela propagação de doenças, argumento este que, por sua vez, se tornou um discurso para justificar as medidas de refreamento das migrações (TNA /CO91/292). Essas ameaças percebidas, conjugadas com as realidades de um lugar como Gibraltar, sem qualquer espaço tangível para o crescimento da população, tornaram-se a força motriz para a implementação de uma legislação destinada, ao mesmo tempo, a conter uma população civil e a restringir os migrantes que ali pretendiam estabelecer residência. Legislações como o Regulamento relativo aos Estrangeiros, do Conselho de 1873, foram as primeiras de uma série de leis destinadas a regular a entrada de migrantes e a obstar o seu direito de residência em Gibraltar (GGA/ Aliens Order in Council 1873). Apesar do contexto legislativo do século XIX, tais leis estabeleceram um ponto de partida para o assunto deste texto, que irá tratar sobre o que vem a ser a essência do fenómeno de migrações do século XX em Gibraltar, referindo-se à chegada da mão-de-obra marroquina em 1969. A dependência duma mão-de-obra migrante importada é elevada em Gibraltar, apesar de o espaço físico disponível para absorver o povoamento dos migrantes ser extremamente limitado. A questão, contudo, consiste em perceber como é alcançada esta manobra de equilíbrio e se não se trataria de uma permissão de entrada somente aos que podem ser úteis para a economia, em vez de uma restrição de entrada para todos.

Antes do encerramento das fronteiras entre Espanha e Gibraltar, em 1969, Gibraltar dependia amplamente da mão-de-obra transfronteiriça espanhola, composta por cerca de cinco mil pessoas oriundas da cidade vizinha de La Línea. Tratava-se de um acordo que funcionava bem entre as partes, pois tais trabalhadores regressavam a Espanha todos os dias após o trabalho o que eliminava toda e qualquer necessidade de se fornecer moradia ou quaisquer outros direitos relativos à residência. Para Gibraltar, o impacto da sua partida, em julho de 1969, com o fechamento da fronteira, marcou um momento decisivo na história. Tendo sido desligado do continente Europeu pelo sua única fronteira terrestre, Gibraltar voltou-se para Marrocos para o suprimento de alimentos e de mão-de-obra necessários para evitar o total colapso da economia. Os primeiros trabalhadores marroquinos chegaram logo a seguir um acordo que estipulava que a sua residência seria integralmente dependente da obtenção de uma autorização de trabalho dada pelo seu empregador, através de um certificados de trabalho. Caso as suas autorizações fossem revogadas, ou seja, se viessem a perder os seus empregos, tais trabalhadores teriam de devolver o seu certificado e o cartão de registo civil (Civilians Registration Principal Act. No. 1950-18) no dia útil subsequente à cessação do seu trabalho (Employment Act 1932-16). Assim, tais trabalhadores eram praticamente totalmente dependentes da boa vontade dos seus empregadores. Quaisquer protestos acerca dos salários ou das condições de trabalho poderiam acarretar consequências sérias, pois os empregadores tinham o poder de os despedir. Consoante o estipulado pela lei, eles seriam extraditados sem terem direito a qualquer tipo de recurso para contestar a sua demissão em tribunal.

Os marroquinos não foram os únicos trabalhadores não oriundos da UE a serem submetidos a tais condições. No caso da comunidade indiana de Gibraltar, os comerciantes foram autorizados a recrutar mão-de-obra em outros países fora da UE quando não conseguiam encontrar a mão-de-obra local devidamente qualificada para o trabalho em questão. Os trabalhadores seriam, então, trazidos da Índia consoante um acordo, semelhante à autorização de trabalho, que os tornava totalmente dependentes da boa vontade dos seus empregadores. Assim como no caso dos trabalhadores marroquinos, o acordo poderia ser revogado e a extradição imposta, independentemente da duração do seu contrato ou estadia em Gibraltar. As escolhas para ambos os tipos de trabalhadores eram limitadas; eles podiam continuar a conformar-se com tais condições, enviando para as famílias, que permaneceram no país natal, todo o dinheiro que ganhavam, ou desafiar os termos do acordo e, obviamente, suportar as consequências. Fica claro que a pressão sentida pelas autoridades, responsáveis por administrar o pouco espaço restante para a moradia e o desenvolvimento, especialmente durante os anos de encerramento da fronteira (1969-1982/85), gerou as condições ideais para limitar os direitos dos trabalhadores migrantes.

Ainda assim e embora as condições não fossem ideais para quaisquer trabalhadores não oriundos da UE, a reabertura da fronteira, primeiramente aos peões, no ano de 1982, e a sua plena abertura em 1985, trouxe um novo foco de preocupação relativo à situação difícil de tais trabalhadores migrantes que, a partir de então, passaram a temer a perda das suas autorizações de trabalho para serem substituídos pelos trabalhadores espanhóis que tinham ido embora em 1969. Com o auxílio do sindicato de Gibraltar, o TGWU, foi fundada a Associação dos Trabalhadores Marroquinos, a qual defendia a necessidade de melhores condições de trabalho. Em fevereiro de 1985, o Gibraltar Chronicle publicou um artigo sobre a Associação dos Trabalhadores Marroquinos, a pedido da polícia espanhola que dizia que os marroquinos que quisessem atravessar a fronteira apenas poderiam passá-la se pagassem uma fiança de setenta e cinco pesetas. O mesmo não era solicitado a nenhuma outra nacionalidade. Mohamed Sarsri, líder da associação, afirmou que essas condições visavam impelir os marroquinos a ir embora e, desse modo, abrir o acesso ao emprego aos hispânicos em Gibraltar. Sarsri disse:

Nós viemos para cá quando a mão-de-obra espanhola retirou-se, numa época em que tínhamos uma posição negocial. Nós poderíamos ter insistido para obter todos os tipos de privilégios e proteções e tê-los-iamos obtido. Contudo, nós não fizemos uso desta força. […] Trata-se de um lugar pequeno e, dessa forma, nós não pedimos o impossível. A moradia é um problema e o desemprego é um novo fenómeno […], mas ao menos deveríamos poder ter um emprego garantido após termos investido tantos anos de trabalho aqui.

Desde então, muitos deles trouxeram as suas esposas para Gibraltar, onde tiveram de unir-se à mão-de-obra trabalhadora e detentora de autorizações de trabalho. Contudo, os filhos não podiam morar com eles nem beneficiar do sistema de educação; eles também não tinham direito aos alojamentos sociais, tendo de submeter-se, dessa forma, às exigências de proprietários privados que alugavam os seus bens a preços exorbitantes. O acesso ao seguro de desemprego era limitado, assim como às prestações de doença, e tudo isso apesar de pagarem impostos e contribuições de segurança social. De facto, Sarsri residiu em Gibraltar por mais de dezoito anos e, ainda assim como muitos outros marroquinos, foi-lhe negado o direito de residência. As mulheres marroquinas que trabalhavam em Gibraltar também foram, naquela época, alvo de numa cláusula específica das leis de imigração (Immigration, Asylum and Refugee Act: Principal Act 1962-12), um retrocesso à Lei relativa aos Estrangeiros do Conselho de 1885, que tornou ilegal darem a à luz em Gibraltar. Tratava-se, claramente, de um pressuposto para contornar o princípio do Jus Soli. As mulheres tinham de registar sua gravidez junto ao Gabinete de Imigração que se assegurava de que todas as mulheres grávidas fossem embora de Gibraltar até o término do segundo trimestre de gravidez, e somente podiam regressar uma vez que a criança tivesse nascido e sido deixada em Marrocos. Em 1985, restavam 1.704 trabalhadores migrantes marroquinos dos 5.000 que originalmente vieram. Um fator importante, contudo, vem a ser o facto de que tais questões passaram a fazer parte de um debate moral e ético. Neste sentido, a Associação das Donas de Casa de Gibraltar abraçou tal combate e conseguiu fazer com que a lei que proibia as mulheres marroquinas de darem a luz em Gibraltar fosse revogada naquele mesmo ano. Esta foi uma grande conquista em prol do reconhecimento das desigualdades às quais os marroquinos eram submetidos. O facto de hoje as mulheres marroquinas poderem dar à luz em Gibraltar gerou uma nova geração de gibraltinos marroquinos com acesso à educação e ao trabalho. Trata-se de uma geração plenamente integrada, mas ainda persistem questionamentos relativos à situação dos primeiros trabalhadores migrantes que chegaram a Gibraltar há mais de quarenta anos.

Em 2009, Giles Tremlett escreveu um artigo para o jornal The Guardian acerca de tal questão. Em referência aos exemplos dados pelo TGWU, ele sugeriu que cerca de um terço dos marroquinos que trabalhavam em Gibraltar tinham solicitado e obtido o direito de se tornarem gibraltinos, sendo hoje detentores de um Passaporte dos Territórios Britânicos Além-mar. Porém, o sistema foi demasiado lento e nem todos os trabalhadores preenchiam os requisitos exigidos, pois os marroquinos sem família ou que viviam em albergues para trabalhadores não possuíam a condição de permanência considerada necessária. O interessante é que um dos indivíduos com quem Tremlett conversou era Mohamed Sarsri que, na época, já residia em Gibraltar há mais de quarenta anos. ‘O objetivo’, sugeriu Sarsri ‘deveria ser a naturalização e a residência permanente, como se estivéssemos no Reino Unido’.

Mas Gibraltar não se encontra no Reino Unido, e isto faz com que Gibraltar possa manter o seu estatuto de Centro de Serviços Financeiros e continuar a ser o núcleo de interesse que atrai trabalhadores e investimentos oriundos do mundo inteiro. Mas isto, em si, levanta todos os tipos de questionamentos relativos a quem deve ser concedido o acesso à residência. Em 1992, Gibraltar introduziu uma legislação destinada a incentivar um novo tipo de migrante económico. Em 1999, foram estabelecidas regras para os indivíduos dotados de um elevado património líquido, denominados “Categoria 2”. Com um investimento mínimo de dois milhões de libras, podiam tornar-se residentes em virtude da sua situação financeira. As condições devem ser claramente observadas, mas o facto de que Gibraltar busca ativamente residentes da Categoria 2 vem demonstrar um terreno desigual relativamente à questão de direito de residência para os migrantes. A solução consiste, doravante, em decidir quem se deve excluir, e não quem se deve aceitar.

Os marroquinos em Gibraltar são cada vez mais numerosos a obter o estatuto de gibraltinos e hoje formam uma parte integrante da comunidade, mas ainda prevalecem as questões morais e éticas. A legislação não leva em conta o facto de que estamos a lidar com seres humanos que, após terem morado e trabalhado em Gibraltar durante, em muitos casos, mais de quarenta anos, se consideram gibraltinos. A lei é cega nestes casos e não leva em conta as questões da subjetividade, como vem a ser o caso da comunidade marroquina que hoje se sente mais em casa em Gibraltar do que em Marrocos, onde os elos com as referências familiares muitas vezes são distantes, e cujos nativos, se um dia regressassem a Marrocos, se considerariam migrantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS